sábado, 16 de outubro de 2010

20TH CENTURY BOYS

De tempos a tempos lá aparece no panorama da BD um título que se demarca pela sua excelência. Milhares de títulos desde a idade de platina da BD até aos dias de hoje trouxeram-nos um já apreciável número de obras-primas. Cerca de 100 anos se passaram desde que este género de arte tomou forma e cresceu até aos moldes que agora conhecemos. Não consigo imaginar o que ainda estará para vir! O que já aqui está, que vou descobrindo, faz-me gostar cada vez mais desta forma de literatura, a ilustrada. Já não tão recentemente dei oportunidade a um género de BD à qual eu colocava reservas: Manga. A fasquia fixou-se mais alto:

Naoki Urasawa é um mestre em thrillers e um dos mais conhecidos e aclamado Mangaka na actualidade. Com formação académica em Economia preferiu a carreira de autor e desenhador de Manga (vulgo Mangaka). Começa a sua carreira de Mangaka em 1983 com o título “Beta!”, desenhou “Pinaple Army” e “Master Keaton”, é autor e artista em “Yawara!”, “Dancing Policeman”, “N.A.S.A.” e “Jigoro”. É a partir de 1994, com “Monster”, que atinge o estrelato e, desde então, todos os seus trabalhos são aguardados com ansiedade por uma legião de fãs. No ano 2000 Urasawa afirma-se ainda mais, mostrando aos fãs do género que não é um autor de uma obra-prima “apenas”: ao mesmo tempo que publica o enorme sucesso “Monster” inicia “20th Century Boys” (“Monster” termina em Dezembro de 2001). Em seguida, adapta a imortal obra de Tezuka Osamu conhecida no Ocidente como “Astro Boy” tomando o título “Pluto” e que o confirma no estatuto de “monstro sagrado” da Manga (já agora, será o título “Pluto” uma analogia à comédia de Aristófanes – que deveria fazer parte do plano de leitura nacional - numa perspectiva que não a do dinheiro, mas da vida e dos direitos?). Nos seus thrillers, Urasawa usa e abusa de referências de todo o género, algumas difíceis de acompanhar, “20th Century Boys” é o melhor exemplo deste especial gosto do autor; também nesta série, o autor mostra o seu gosto pela música (Urasawa é também vocalista e guitarrista de uma banda com trabalho editado http://www.youtube.com/watch?v=CxWaTpXlnUo ). Actualmente, e desde 2008, trabalha na série “Billy Bat”, mais um thriller perturbante e…estranho! Refira-se que o trabalho do autor foi adaptado para Animé (animação japonesa; a série “Monster” encontra-se à venda na cadeia de lojas FNAC, por um preço absurdo, diga-se) e ao cinema “live-action” (com actores humanos).
“20th Century Boys”, eu deveria esperar pelo fim da edição em Inglês desta obra de 225 capítulos em 22 volumes antes de a comentar, mas não consigo esperar. Vai no 11º volume publicado pela VIZ Media em Inglês; os últimos dois volumes têm o título “21st Century Boys”.

“20th Century Boys” é, demograficamente, um “seinen” (jovens adultos e adultos). Foi publicado originalmente entre os anos 2000 a 2006 tendo arrebatado por completo o público e a critica de Manga e não só. Ganhou prémios no Japão e nos EUA. Não foi difícil perceber porquê depois de o ter começado a ler. Desde as primeiras páginas que se mostra como uma obra muito madura e fruto do profundo conhecimento do panorama em que decorre e também da imaginação, desde a realidade japonesa dos finais dos anos 60, no séc.XX, até aos ainda imaginários anos vindouros no corrente século XXI. Embora a acção decorra no Japão, país distante de nós, mesmo no imaginário, verifica-se na obra uma dose elevada de nostalgia. Esta nostalgia atrairá mais o leitor japonês, devido aos lugares e costumes japoneses, mas não deixa de ser contagiante a qualquer um que a leia, afinal fomos todos crianças e guardamos memórias dessa época.

A história começa nos finais dos anos 90 no séc. XX apresentando-nos Kenji Endo, um trintão dono de uma loja “franchisada” que encontra conforto na sua feliz infância e, em aparente paradoxo, na sua adolescência que não vingou dos sonhos de um futuro promissor, para lidar com a sua actual insípida vida. Tomando conta da sua rabugenta mãe e de uma sobrinha, Kenji é confrontado com a morte de um amigo de infância e o desaparecimento de um cliente. A partir destes dois acontecimentos, que depressa se descobrem interligados, começa a intricada trama para “salvar o mundo”. A obra é repleta de “flashbacks” que oportunamente nos transportam a outras épocas onde se deram determinados acontecimentos que culminam na destruição da sociedade Japonesa conforme se conhecia até então. Kenji vê-se atraído para um mistério que se vai adensando, embora que contrariado ao princípio depressa se envolve com espírito indomável de missão extrema. Pelo caminho descobre que acontecimentos passados na sua infância, já esquecidas típicas brincadeiras de criança, subitamente vêm à superfície através de um culto, de uma seita, liderada pelo auto-intitulado “Friend”. Esta seita cresce rápida e perigosamente, convergindo nas intenções pré delineadas pelo seu líder na tomada do Poder e mais. Os acontecimentos, alguns catastróficos, que se vão dando ao longo do percurso de ascensão e consequente hegemonização da seita, são curiosa e misteriosamente iguais àqueles descritos num diário do clube das brincadeiras de infância de Kenji e seus amigos, diário imaginado e escrito pelo próprio Kenji. Esse diário é chamado pela seita dos “Amigos” como “O Livro das Profecias”. Um enredo que assenta na premissa do perigo poder vir do lado que parecer mais inócuo. No caso japonês, assolados por seitas, o perigo embora desdramatizado pelas autoridades é real, conforme acontecimentos dramáticos que já ocorreram no Japão (20 de Março de 1995). Também por o combate ao perigo estar nas mãos dos mais prováveis personagens, o homem e mulher comum. Não existem super-heróis com poderes fantásticos, mas homens e mulheres que num dado momento e debaixo de dadas circunstâncias são obrigados a tomar decisões e empreender acções que poderão ser vistas como extraordinárias, heróicas.

Em “20th Century Boys” os personagens são às dezenas, extremamente bem explorados e dos quais destaco, para além do incontornável Kenji, o improvável indomável Otcho, amigo do circulo interno do clube de infância de Kenji, sagaz e de estatura pequena enquanto criança, personagem que se desenvolve num historial pessoal complexo e dramático. Também, a sobrinha de Kenji, Kanna Endo, a qual é deixada aos cuidados do tio Kenji pela mãe que desaparece em circunstâncias misteriosas. Yoshitsune, outro amigo de Kenji, tímido e franzino e que toma uma improvável importância no enredo. Maruo, também do grupo de infância, um comic-relief estereotipado, o menino gordo que come sempre mais um ramen, que depois de adulto continua gordo e com filhos gordos; talvez, de todos os amigos de Kenji, aquele que mais tem a perder em embarcar na missão de salvar o mundo, mas que por isso mesmo, em contraponto à sua caracterização, demonstra ser o mais corajoso. Friend, o enigmático líder da seita que toma o poder e que ameaça acabar com o mundo; sabe-se que deverá ser um dos amigos de infância de Kenji, quem, só mesmo no final do livro. Yukiji, a amiga Maria-rapaz de Kenji, que de esbaforida em criança passa a adulta ajuizada e profissional responsável, comicamente pronunciada como policial dos narcóticos embora seja oficial alfandegária, tem como parceiro de profissão um cão de nome Blue Tree que, no japonês, é uma brincadeira à pronúncia do nome Bruce Lee. God (Kamisama, no japonês) detesta ser chamado assim, é um vagabundo velhote estranho e obcecado por Bowling que se serve deste para analogias e alegorias de todo o tipo, com inegáveis poderes de clarividência é respeitado pelos seus companheiros do infortúnio e será crucial em definitivamente envolver Kenji na acção. Outros personagens secundários abundam e embora não tão explorados como os principais, merecem ser tratados tridimensionalmente acudindo assim para a muito maior riqueza do enredo; nestes personagens destaco um aspirante a mangaka (old-school). A par da riqueza dos personagens, prima a abundância de referências culturais nas quais temos a preciosa ajuda dos tradutores da obra para o inglês no final de cada livro para, verdade seja escrita, simplesmente as identificarmos (especialmente as japonesas, óbvio!); o título da série será a referência mais flagrante, “20th Century Boy”, é uma música dos T. Rex http://www.youtube.com/watch?v=Ylww2dOW7fg , da autoria de Marc Bolan. O desenho realista é soberbo. O encadeamento da história é brilhante. O autor não é condescendente com o leitor, para o primeiro o segundo é inteligente.

Sendo um enredo de imensos personagens, alimentado por saltos temporais, é-me impossível não compará-lo a uma série televisiva que com a mesma receita tentou (e de alguma forma até conseguiu) atrair uma multidão de espectadores: “Lost”. Infelizmente para mim, “Lost”, depois de o início promissor que foi a primeira temporada, já a meio da segunda temporada percebi que os escritores da série não conseguiriam resolver, desatar, o imbróglio onde se meteram. A complexidade dos personagens e das situações acabaram por ser resolvidas com “coelhos-tirados-da-cartola”, coincidências convenientes, troca de personalidades mal paridas, e “vamos-lá-matar-um-personagem-para-trocar-as-voltas-ao-pessoal” demasiadas vezes! Um final quase Deus Ex-Machina que até poderia ser considerado infantil. Alguns autores de thrillers famosíssimos poderiam lhes ter ensinado que parte do sucesso de se conseguir explorar uma situação complicada que necessita de resolução inesperada e até brilhante mas bem fundamentada estará exactamente em não complicar demasiado, isto é, evitar segundos (terceiros, quartos, etc.) enredos paralelos; explorar os personagens, sim; torná-los tridimensionais para os fazer mais credíveis, sim; mas complicá-los demasiado para além do controlável, não; não abusar em personagens secundários inconsequentes também é obrigatório. Para o moto, idem. Em “Lost” perdeu-se o fio à meada. Quando comecei a ler “20th Century Boys” e, ao fim do terceiro volume, apercebendo-me do enorme número de personagens (que continuou a aumentar), e das várias situações temporais exploradas alternadamente, fiquei receoso que estaria a ler algo que me traria, cedo ou tarde, alguma desilusão: será que o autor conseguiria resolver, desatar, o imbróglio em que se estava meter? Pois, os escritores de “Lost” teriam muito a aprender com Urasawa. Com as devidas desculpas de não saberem quando serão e se serão retirados do “ar”, tendo que resolver a situação abruptamente (ou não, ver “Flashforward”!), deveriam ter as coisas mais bem estudadas para evitarem epítetos de acéfalos. Enfim…”20th Century Boys” é uma novela que demonstra muito bem que os conselhos de Agatha Christie ou Sir Arthur Conan Doyle, entre outros, devem ser seguidos, se se tiver inteligência para os perceber. Não li até ao fim, pois ainda não foram todos editados em inglês, mas já vi o filme, por isso arrisco (pouco) neste comentário.

Eu, pelo que até agora li, aconselho com veemência esta série Rock’n Roll Manga.

Curiosidades divertidas:

Este é o link para a música do filme “live-action” “20th Century Boys”, cantada pelo próprio Naoki Urasawa (ainda bem que ser cantor não é o seu principal ofício, gostos à parte!) e da autoria de “Bob Lennon” (Kenji Endo), “Gu ta la la”:
http://www.youtube.com/watch?v=cth3QHUDF_I&feature=related

A versão japonesa, ao vivo em 1992 no Tokio Dome de “20th Century Boy”(T.Rex), por Hide:
http://www.youtube.com/watch?v=h2UYOpW-3G4&feature=related

Ou, com um som melhor, em 1994, pelos mesmos Hide:
http://www.youtube.com/watch?v=TO_uUrvpOj0&feature=related



quarta-feira, 18 de agosto de 2010

CID

Acabadinho de chegar de férias, ainda na ressaca do belo nada fazer, trago aqui aquele que é o meu autor favorito (nacional e internacional) num livro editado pela Assírio & Alvim com assinatura de João Paulo Cotrim e do próprio Augusto Cid: “CID”. É uma bela edição encadernada com generosas dimensões (23x29cm) e com um apanhado em 208 páginas dos já longos anos (50) de trabalho do enorme Augusto Cid. Adquiri-o durante as férias e custou-me 31,5 Euros; se compararmos a qualidade de apresentação gráfica desta obra com a anterior "Porreiro Pá" (da editora Guerra e Paz) que custa 22 Euros, vale muito bem a diferença! É uma viagem temática guiada pelo João Paulo Cotrim que nos leva pelo trabalho de Augusto Cid, com alguns cartoons inéditos entre muitos já publicados, e uma excelente entrevista ao homem das artes que é o Augusto Cid, que consegue ainda ser mais do que um excelente cartoonista. Já muito escrevi noutros posts sobre o Augusto Cid e pela simpatia que lhe nutro enquanto paladino de todos nós na crítica destrutiva que faz aos mais diversos personagens da nossa história recente, triste história de atropelos em que os sinistrados somos nós povo. Ainda na ressaca das férias, logo, com alguma preguiça sirvo-me do excerto da entrevista de João Paulo Cotrim ao Augusto Cid em Maio de 2010 que serve de apresentação à obra no sitio da Assírio & Alvim:

«“O cartoonista não tem por obrigação construir seja o que for. Se vemos que alguma coisa está mal, o nosso papel é destruir. Depois há gente que vem atrás e constrói sobre os escombros, mas não é nossa missão fazer crítica construtiva, isso cabe a outros, pensadores, políticos…”1 Talvez escombros seja exagero, mas a obra de Augusto Cid (Faial, 1941), que cumpre agora meio século, alguns estragos cometeu numa ou noutra figura da política nacional, como aliás exemplifica logo o primeiro dos auto-retratos que abrem esta antologia. E se começámos com o olhar do artista sobre o seu corpo, tínhamos de iniciar este texto com palavras suas sobre o seu espírito. O observador, que remete com ironia para pensadores e políticos a missão de construir, mexe com o objecto, incomoda com a perspectiva e a caneta. Pode até pedir desculpa, que não lhe evita dissabores: foi o primeiro desenhador de humor do pós-25 de Abril a ver livros seus apreendidos, sofreu processos e retaliações, antes ainda de outras mais duras e pesadas consequências devido a um acto de cidadania. Em país de coitadinhos sempre prontos a vestir o papel da vítima, preferindo os ademanes da simpatia à simples frontalidade, presos algures entre o cacique e o sabujo, Cid foi malcriado e panfletário, obsessivo e impiedoso, mas acima de tudo lúcido, acutilante e divertido.
João Paulo Cotrim»

quinta-feira, 3 de junho de 2010

SERÁ QUE ME ESTOU A TORNAR NUM OTAKU?

Bem…depois de ter escrito este post, verifiquei que tinha material para dois ou três! Enfim…como só actualizo este blog quando o rei faz anos, os poucos mas bons que lá vão lendo isto poderão se entreter (ou torturar) durante um bom período.
Manga, pois então (desculpa lá Verbal!)! Tornou-se um vício difícil de contornar, felizmente um “bom vicio”. Tenho lido (leia-se, devorado!) série atrás de série. Todo este entusiasmo não advém só das narrativas extremamente bem elaborados e dos desenhos que as exprimem, também advém da própria cultura japonesa que se vai abrindo para além da até agora estreita e um tanto ou quanto mal concebida ideia que dela fazia. O género e estilo Manga são extremamente ricos e ainda só agora os comecei a experimentar, mas acredito já distinguir o que gosto e o que não gosto muito…acho! Pela minha idade, uns belos (AH-HUM!) 40 aninhos, mas com um coração de moço novo (até me engasguei!) consigo apreciar em especial dois estilos demográficos de Manga que, à partida, até poderão parecer muito colados: o Shonen e o Seinen. De facto estes dois estilos são bem distintos no conteúdo.
Por vezes apetece-me Seinen e outras vezes só tenho pachorra para Shonen. Já li Josei (para mulheres) e desfolhei algumas Shojo (para miúdas) e não fizeram, realmente (é bom sinal!), o meu género; mas não deixou de ter o seu interesse.

Shonen é um género de Manga para jovens que irão dos 11 aos 18 anos (dependendo da maturidade alcançada por cada um, independentemente da idade); Seinen é um género destinado à faixa etária compreendida entre os 18 e os 40 anos (não é rígido, obviamente). A caracterização recai sobre o título aquando da sua primeira publicação em revista especializada no respectivo género.
Em alguns Seinen figuram personagens na idade típica dos Shonen, como personagens em idade escolar, mas as interacções são, em comparação aos Shonen, mais violentas, mais retorcidas e com cenas de sexo ou nudez, logo demarcando-se do público mais juvenil dos Shonen, onde também existe violência e nudez e sexo sugerido mas mais suave. É preciso entender que o Japão tem um conceito muito diferente do ocidente em matérias de censura a conteúdos, existem algumas séries que no Japão são Shonen, mas no ocidente são consideradas para maiores de 18 anos; o contrário também se observa (Seinen que no ocidente têm classificações para 16 anos). O Shonen tem mais cenas de acção, e o espírito implicado nos argumentos servem de exemplos ou guia de conduta e preparação para os jovens que lêem este género de Manga. A orgulhosa, e muito diferente em muitos aspectos, cultura japonesa está expressa na Manga e é indissociável do povo japonês, a ênfase dada aos valores considerados bons na sociedade ajudam a preparar as gerações futuras através da leitura da Instituição que a Manga é. Daí que seja comum ler argumentos pejados de situações de camaradagem, jogos de equipa com superação de desafios, competição e perseverança, em que a vitória deve ser alcançada com todo o esforço e mais algum e em alguns casos a todo o custo, num conceito moral que nos ultrapassaria, mas longe de ser hipócrita ou apenas de querer parecer politicamente correcto. Em geral, os Seinen contêm personagens com idades compreendidas entre os 20 e os 40 anos, e exploram os problemas e solicitudes típicas da idade, aprofundando vertentes que podem ir desde a introspecção, dos negócios à política, da História à ficção científica, com referências e níveis de complexidade que exigirão uma bagagem cultural e mesmo vivência empírica que os mais novos ainda não têm, isto para além da muito provável seca que apanham com assuntos tão aborrecidos. Também existe Manga que foi crescendo com os leitores, por exemplo a série “Cavaleiros do Zodíaco” começou por ser um Shonen e, acompanhando os leitores que se afeiçoaram à série, cresceu com eles e tornou-se um Seinen. Outra, das grandes diferenças, encontra-se numa faceta que para nós ocidentais estará na mão do tradutor: a escrita. Os Seinen são escritos com Kanji de nível universitário.

O que é o Kanji? Pois bem, uma das facetas da Manga, que a nós pobres ocidentais nos irá sempre escapar (a não ser que se inscrevam num curso de japonês!), é a impressão dos caracteres que exprimem a língua japonesa (óbvio). O nome japonês para a língua japonesa é “Nihongo” (日本語). Devido às particularidades da escrita japonesa, a impressão da mesma, onomatopeias incluídas, é também uma forma de arte gráfica. Cada autor terá um estilo muito próprio de fazer exprimir os seus personagens, conferindo-lhes mais gravidade, seriedade, gozo, candura ou doçura, etc, não só pela expressão facial e corporal desenhada mas também acentuada pelos caracteres utilizados e o próprio desenho desses caracteres. O alfabeto japonês é constituído de dois silabários, Hiragana (ひらがな) e Katakana (カタカナ), e de um enorme número de ideogramas apelidados de Kanji (por exemplo: 漢字). Logo, muito basicamente, o que é o sistema de escrita japonês?

O sistema de escrita japonês não foi inventado numa base totalmente original, ao invés, conforme outras expressões linguísticas escritas no mundo, colou-se ao sistema cultural geograficamente predominante, neste caso o Chinês. No caso do Inglês (por ser a língua mais utilizada nas traduções), que é de origem Germânica e em que só alguns dos substantivos e adjectivos que o constituem são estrangeirismos de origem latina, a maioria da sua língua foi adaptada ao alfabeto romano devido às invasões desta civilização a terem tornado predominante (daí ser por vezes de difícil pronunciação quando lido, pois foi adaptado a um sistema de escrita em que a pronúncia é diferente: e=i; u=iu, etc.); no entanto a família linguística Germânica e Latina é a mesma (Indo-Europeia). O Japonês passou pelo mesmo em relação ao Chinês. O sistema de escrita Chinês é constituído por milhares de símbolos idiomáticos complicados (mais de 10.000) actualmente reconhecidos pelo alfabeto Romano como “hanzi”, no caso japonês dão pelo nome de “kanji”. É claro que os japoneses ao longo do tempo inventaram kanji próprios e apenas por eles utilizados, e os kanji e os hanji são aprendidos gradualmente ao longo dos níveis escolares; o próprio Estado define quais os ideogramas indispensáveis (no Japão são obrigatórios cerca de 2000 no nível universitário mais alto, mas ao todo serão cerca de 3000). A tradução do kanji para o alfabeto romano dá origem às traduções de, por exemplo 黒鷺(the Kurosagi)死体(corpse)宅配便 (delivery service). Ao contrário da pronunciação do Inglês no alfabeto romano, o kanji Japonês adapta-se muito bem à pronúncia da língua inglesa, isto porque quem desenvolveu essa tradução foi o Inglês James Curtis Hepburn (Sistema Hepburn). O caso Chinês não se aplica ao ocidente por ter sido desenvolvido para possibilitar o entendimento do Mandarim pelos vários dialectos chineses (sistema Pinyin): como exemplo, “hanzi” pronuncia-se qualquer coisa como “n-tsuh” (“kanji”= “khan-gee”). Associado a tudo isto existem dois estilos silábicos que possibilitam a escrita de palavras estrangeiras e outras (mesmo as em forma de ideograma), também a escrita em teclados de computadores e outros, e simplificar a expressão e tradução dos textos: o “Katakana” que é um estilo formal, e o “Hiragana” que é um estilo mais desprendido tipo calão. Estes dois estilos caracterizam-se pela fonética, sendo um género de alfabeto que se compreende por sons formados por 5 vogais (a, i, u, e, o, por esta ordem) e de 46 kana representado por uma (monografo - goujun) ou duas (ditógrafo - yoon) consoantes agregadas a vogais (“ka”; “se”; “tsu”; onde o som representado pela letra ocidental “n” é o único que não é agregado), isto muito basicamente pois ainda existem outras concordâncias. Não vou explicar os Furigana (vejam na internet!). O Katakana e o Hiragana têm também um enorme relevo nas onomatopeias, que não são totalmente passíveis de tradução literal para a nossa língua pelo risco de se tornarem imperceptíveis; encaradas também como uma forma de arte, preserva-se a intenção e o estilo do autor (normalmente aparecem traduzidas literalmente e devidamente explicadas no final da versão ocidental da Manga). Descobriu-se que civilizações diferentes ouvem os mesmos sons de maneira diferente: a onomatopeia japonesa para o som do jogo Pacman não se lê “wâco-wâco” mas “paco-paco”, isto foi dito a um tradutor japonês e ele entendeu o som “wâco-wâco” como “paco-paco”, dizendo que estava correcto. Também a inexistência de certos fonemas trazem situações caricatas, como o caso da letra “L”não ter espelho no Goujun Kana: aparece como o som “re” (Luís lido em katakana é dito “ru i su”- o primeiro fonema “ru” é dito como o “re” na palavra “aure” e “su” é dito “sxe”. Grilo escrito em katakana é composta pelos kana “gu”, “ri” e “ro” – a vogal “u” em japonês tem a fonética igual ao primeiro “e” na palavra portuguesa “pequeno”). Os desenhos, também por si só, são bastante simbólicos ou iconográficos, ex: uma cerejeira em flor quer transmitir esperança ou proximidade de um ente querido já desaparecido; os exemplos são imensos. Se ainda estiverem a ler isto :) já devem ter percebido que não seria fácil aprender este sistema de escrita, em especial os katakana e hiragana por alguns serem, enquanto escritos, parecidos uns com os outros, e, também, que devido a estas particularidades perdemos um bom bocado da arte e dos sentimentos expressos nos Mangas, logo, do prazer completo que seria ler um no original. A própria e muito característica ordem de leitura de um Manga é também extremamente importante (ver imagem à esquerda): o japonês é lido da direita para a esquerda e de cima para baixo, mas também poderá ser lido de baixo para cima e mesmo da esquerda para a direita em casos muito particulares que eu não vou aprofundar devido à complexidade de me fazer entender como deve ser, correndo o risco de cair em paradoxos difíceis de explicar e que requeriam mais e mais linhas neste post (ouvi alguém a agradecer :) . O japonês é uma língua tramada para os ocidentais e as traduções, segundo os próprios tradutores, são mais uma arte do que uma ciência. As referências culturais são sempre imensas, logo, necessitam de muita paciência e gosto por parte de quem lê em aprender. Os bons tradutores reconhecem o gosto e a necessidade dos leitores perceberem todo o contexto da narrativa, portanto, no final de cada livro, há um género de compêndio onde se explica tudo isso.

Apesar da escrita e leitura ser um “bico-de-obra”, a língua falada é considerada simples de aprender…enfim…dizem que sim!

Outra particularidade da cultura japonesa é os graus honoríficos. A cultura japonesa assenta numa elevada dose de demonstração de respeito pelo próximo, que remonta ao período feudal. As Mangas no original obviamente que têm essas reverências, e as melhores traduções para outras línguas mantêm-nas também no original. Isto porque essas reverências por si só demonstram as ligações que existem entre as pessoas (os personagens) sem que seja necessário grandes explicações para entender certos contextos. A boa educação nas relações interpessoais na cultura japonesa é uma faceta critica que peremptoriamente não pode ser descurada, com risco absoluto de, em caso contrário, seriamente ofender, destruindo relações sejam de que tipo for. Quando nos dirigimos a alguém japonês (em especial, no Japão) teremos que utilizar o honorífico como um sufixo ao nome da pessoa ou, em certos casos, apenas o honorífico: “Akira-san”; “Otomo-sensei”, ou apenas “Sensei”. O nome de família normalmente é o primeiro enquanto o segundo nome é o próprio: Katsuhiro Otomo (大友克洋). Os nomes escrevem-se com kanji e/ou katakana e como noutras culturas têm terminações como “o filho mais velho”, “o filho mais novo”, “a filha”, etc, e também podem significar literalmente “o mais bravo de todos” ou “vento do este”. Mas isto complicar-se-ia se eu entrasse nos pormenores (e aqui os pormenores contam todos!), mas toda esta conversa serve apenas para vos dar uma ideia de como as coisas são no Japão e o porquê da Manga ser como é, dando um outro sentido de leitura e talvez uma apreciação mais maturada a quem se arriscar à leitura do género ou estilo (como preferirem). Então os honoríficos são: “-san”, o mais comum dos honoríficos, que é equivalente a Sr., Sr.ª, senhorita, é apropriado a todas as situações sociais onde a educação é exigida (e são todas!). “-sama”, este honorífico encontra-se um grau acima de “-san”, conferindo mais respeito a quem é dirigido. “-dono”, advém da palavra “tono”, que significa “Senhor” (“Lord”, no Inglês), confere imenso respeito. “-kun”, este honorífico é empregue nos nomes dos rapazes e expressa familiaridade ou carinho, por vezes é utilizado entre amigos jovens ou adultos ou também quando nos dirigimos a alguém apenas mais novo ou com um posto inferior no trabalho. “-chan”, utilizado para expressar carinho para com, especialmente, moças; também é utilizado em bebés, animais de estimação (!) e entre namorados, dando um sentido de carinho infantil. “Bozu” é utilizado para informalmente se referir a um miúdo (“puto”, em Portugal; “guri” no Brasil). “Sempai” ou “Senpai” é um título que sugere que a pessoa a que se destina é alguém sénior num grupo ou numa organização; é muito utilizado na escola quando os alunos mais jovens se dirigem aos mais velhos; Pode ser utilizado no local de trabalho quando alguém mais novo na empresa se dirige a alguém com mais antiguidade. “Kohai” é o oposto de “Sempai”, logo, é utilizado inversamente, do mais velho para o mais novo, conota respeitosamente uma situação de inferioridade. “Sensei” significa literalmente “aquele que veio antes”, é utilizado para professores, doutores, mestres em qualquer profissão ou arte. Finalmente, a ausência de honorífico (“- espaço em branco”), que é por muitos tradutores esquecida e é muito provavelmente a mais significativa diferença entre a cultura japonesa e a ocidental: a ausência do honorífico normalmente demonstra que quem se dirige tem a permissão do interlocutor a fazê-lo de uma forma muito íntima; Usualmente só as pessoas casadas entre elas, família ou amigos muito íntimos têm esse privilégio; Conhecido como “yobisute”, é extremamente gratificante quando alguém atinge esse nível de intimidade começar a tratar a pessoa pelo nome próprio sem empregar o honorífico, mas se esse nível de intimidade ainda não tenha sido atingido, o insulto poderá ser considerado enorme.

Existem Mangas para todos os gostos e preferências, dentro das demografias há diversos géneros: policiais, super-heróis, terror, ficção científica, costumes, agricultura…agricultura?! Pois é! Vai buscar-se de tudo. Os diferentes géneros de literatura estão difundidos por todas as culturas, mas nos Mangas estão deliciosamente estratificados a grupos de interesse variados. A existência de variadíssimas temáticas é um apanágio da Manga (assim como da Anime, o cinema de animação japonês).
Posto isto, cá vão algumas sugestões de leitura:

Actualmente encontro-me a acompanhar uma série Seinen (cá está: no ocidente está classificada para 16 anos) que tem como palco uma universidade agrícola: “Moyasimon – Tales of Agriculture” (lê-se “Moyashimon”). Escrito e desenhado por Masayuki Ishikawa, roda à volta de um rapaz (Tadayasu-kun) que, por alguma razão (no texto), consegue ver bactérias e com elas interagir. É um Manga especializado muito divertido de se ler, com imensos “comic-reliefs” em que o enredo ainda está apenas ocupado a desenvolver os personagens mas em que já nos apercebemos que o jovem Tadayasu se vê metido entre as maquinações de um professor excêntrico e sua estranha assistente, determinados em arrombar os segredos e em despoletar o imenso poder do mundo bacteriano, e os esquemas envolvendo experiências agrícolas dos seus colegas de universidade. Nesta série aprendemos coisas incrivelmente estranhas das culturas, enquanto palavra homónima, de diversos povos do mundo, em especial o Japão. As bactérias são os principais agentes na fermentação dos alimentos e bebidas, o Japão é conhecido também por ser o país do Saké (que é a bebida fermentada com maior teor alcoólico no mundo), por aqui podemos ver o interesse que este título poderá despertar na cultura japonesa, e, porque não, noutra qualquer. Este título é publicado em Inglês pela Ballantine Books – Del Rey imprint e encontra-se, por enquanto, no primeiro volume. É, de facto, diferente pela positiva.

Outro género bastante explorado nos Manga é os costumes. Entenda-se por costumes o modo de vida e pensamentos (alguns muito pessoais mas que reflectem a sociedade no geral) do povo japonês. Tenho lido as mundanidades de Jiro Tanigushi em “The Walking Man” (“Aruku Hito”, dito em japonês): não é uma novela gráfica (Gekiga) para amantes de acção ou longos textos, antes é uma obra de detalhe gráfico impressionante onde o personagem principal se limita a caminhar por trilhos da natureza e urbe, observando e apreciando o quotidiano e o ritmo normal da natureza e das pessoas que o rodeiam. É do melhor em termos de ilustração que já vi, Manga ou outros. É introspectivo sem perturbar, diria mesmo que é relaxante.
Ainda nos costumes, e estando eu tão interessado no frenesim que é a Manga, dei uma oportunidade a uma série que normalmente deixaria passar: “Genshiken”, que são as iniciais para “Gendai Shikaku Bunka Kenkyuu Kai" (Sociedade Para o Estudo da Cultura Moderna Visualmente Dirigida). Está muito bem escrito e o desenho é muito divertido. Simplesmente é um retrato ao estilo de vida denominada por “Otaku”, com visões partilhadas por quem a vive por dentro e por fora. “Otaku” (おたく), que literalmente significa “seu lar”, é um termo usado no Japão para designar um fã por um determinado assunto, seja qual for. No imaginário japonês, a maioria dos Otakus são indivíduos que se atiram de forma obsessiva a um hobby qualquer. No ocidente a palavra é utilizada como uma gíria para rotular fãs de Animes (cinema de animação japonês) e Manga em geral, numa clara mudança de sentido em relação ao idioma de origem do termo. Muitos membros da comunidade acham o termo ofensivo por não concordarem com a distorção de sentido do mesmo, recusando-se a serem assim chamados. O termo é normalmente utilizado apenas dentro da comunidade de fãs de Anime e Manga e de fluentes no idioma japonês, sendo portanto desconhecido para o grande público. A aplicação do termo tem origem no humorista e escritor japonês Akio Nakamori, que reparou que o termo era muito utilizado pelos fãs de Anime e Manga, tornando-a tragicamente popular quando a publicou num livro seu em 1989, “M no jidai”, para caracterizar o personagem principal; este livro baseava-se na história verídica de um assassino em série, Tsutoma Miyasaki, fã de Manga, que se deixava consumir pela sua obsessão recriando cenas das suas Manga preferidas, que recriava e fazia terminar em estupro e assassínio. Portanto, na época, criou-se um grande tabu em volta do termo e ele passou a ser usado de forma pejorativa para designar qualquer indivíduo que se torna obcecado demais em relação a um determinado assunto. Com o tempo o termo tornou a entrar no léxico e define, no Japão, já sem o estigma de Tsutoma Miyasaki, a afeição por um determinado hobby, seja ele qual for (computadores – pasokon otaku; videojogos – gemo otaku, etc.). Genshiken debruça-se no clube universitário com o mesmo nome que é subsidiado pela instituição. Os membros desse clube utilizam o orçamento para Manga, jogos e Cosplay (que consiste em recriar um personagem de ficção vestindo-se e agindo, nos casos mais extremos, como o personagem escolhido; não foi originalmente criado no Japão) e vivem e respiram toda a cena artística ligada ao mundo da Anime e Manga. Vivem-se situações engraçadas quando dois mundos diferentes colidem: um dos jovens que se junta ao clube Genshiken é bem-parecido e completamente distraído em relação ao que o rodeia, em especial a uma bela jovem que tudo tenta para o atrair. Essa jovem não percebe o mundo otaku, logo dá azo a muitas cenas divertidas e caricatas. Tudo isto é mexido com uma grande sensibilidade pelo autor, Kio Shimoku, que ora com humor ora com muita seriedade nos dá um retrato da sociedade japonesa (e não só, convenhamos) em especial destes jovens intervenientes um tanto ou quanto desfasados ou, melhor, incompreendidos pela sociedade em geral, a caminho de se tornarem adultos. Está classificado como um Seinen, mas aconselharia a sua leitura a jovens a partir dos 14/15 anos. Publicada em Inglês pela Del Rey, conta com o total, já fechado, de 9 volumes.

Outra série, já atrás referenciada, é o “The Kurosagi Corpse Delivery Service”. Série Shonen advanced de horror(cá está um caso que no ocidente será aconselhado para maiores de 18 anos), onde a ficção científica anda de mão dada com casos de policia, que por sua vez anda de mão dada com o sobrenatural, que por sua vez anda de mão dada com o bizarro…anda tudo de mãos dadas! O humor negro habita esta série com uma mestria notável, o que abate o tom muitas vezes tétrico nele impresso. A série segue um grupo de jovens recém-licenciados por uma universidade Budista e que sabem não terem grande saída no mercado de trabalho. O estranho grupo é constituído de 5 jovens, cada um deles com estranhos poderes ou vocações: um é um itako, tem a habilidade de comunicar com os mortos; outro tem o talento de descobrir, com a ajuda de um pêndulo, cadáveres; outra é especialista em preparar, embalsemar, cadáveres (que é uma arte rara no Japão, onde a cremação é o costume); outro é capaz de canalizar uma entidade alienígena que se manifesta através de um fantoche que carrega na mão; finalmente, a líder natural, uma especialista em hacking que consegue obter todo o tipo de informação através de um computador. Com determinados talentos e na perspectiva do desemprego decidem criar uma empresa em que o cliente é o cadáver! Procuram por cadáveres e servem-lhes o último desejo em troca de dinheiro (que quase sempre não recebem!). É magnífico. Escrito por Eiji Otsuka e desenhado por Housui Yamazaki, conta, até agora (no Japão também), com 11 volumes publicados; em Inglês está disponível pela Dark Horse. Cada volume tem vários casos que são fechados, mas existe uma trama maior por detrás que muito lentamente se vai descobrindo. Aconselho vivamente.

“Ikigami” é um Seinen que assenta no actual pressuposto que a vida é um dado adquirido e que algo tem que ser feito para que a sociedade aprecie o inestimável valor que ela representa, saindo da apatia que há muito assola essa mesma sociedade. O autor, Motoro Mase, delineia uma trama onde o Estado, qual “Big Brother”, encontra uma solução para o efeito. O Estado, através do sistema nacional de saúde, cria um programa de vacinação onde aleatoriamente uma em cada 1000 vacinas contém um patogénico que irá matar a pessoa em que for administrada entre a idade dos 18 aos 24 anos. A pessoa em questão será avisada pelas autoridades 24 horas antes de a morte ocorrer, para que possa por em ordem as suas coisas e fazer as suas despedidas. O protagonista desta série é um jovem recentemente admitido no programa nacional de saúde, que tem como função entregar os papéis de aviso de morte chamados de ikigami. É uma série “ongoing” carregada de muita tensão emocional e que é brutal na “solução” encontrada por um Estado com o objectivo de conferir mais “gosto” pela vida, quando o que estará em causa será maior dedicação, mais trabalho, logo, mais produção. É bastante interessante, está muito bem escrito, o desenho é excelente, se bem que consegue ser um bocado deprimente…não é uma leitura para qualquer hora…por outro lado, faz-nos pensar em aproveitar melhor os momentos que temos enquanto estamos vivos.

Estou a ler outras séries, algumas já foram referenciadas num outro post, como o absolutamente fantástico “20th Century Boys” ("Nijisseiki Shonen" dito em japonês, este é um título que merecerá um post só dele, se eu conseguir arranjar uma maneira de não fazer spoilers); o impressionante “Vagabond”; a arrebatadora visão de Naoki Urasawa em “Pluto”; o já bastante conhecido e perturbante “Death Note” (cá está um título onde o protagonista não olha a meios para atingir o seu fim); a fantástica narrativa de ficção pós apocalíptica “Nausicaä of the Valley of the Wind” do impressionante mestre narrador e desenhador que é Hayao Miyazaki, simplesmente maravilhoso e arrebatador. Com tempo (muito tempo) irei, aos poucos, trazer aqui alguns desses títulos.
Sendo ainda novo neste género ou estilo de BD, já dissequei muitas das suas facetas que me fazem crescer o prazer na leitura. Sendo bastante complicado obter títulos mais antigos, que remontam ao séc. XIX e meados do séc. XX, por não haver traduções, tenho que me recorrer à internet para os compreender e com isso obter mais cultura Manga para melhor atingir as imensas referências existentes nos actuais títulos. Espero que com todo este post ter sido de alguma ajuda a quem procura também melhor entender o género ou estilo. No que me toca, deu-me um trabalhão recolher toda esta informação em diversas fontes (bem-dita internet), mas foi bastante satisfatório. Se ainda estiver alguém a ler estas últimas linhas, poderá pedir-me a T-shirt “Eu consigo ler um post do Refém da BD até ao fim!”, existem na variante “…sem tomar drogas!” e “…sem adormecer!”. Beijinhos e abraços.

sábado, 1 de maio de 2010

MÜ, A CIDADE PERDIDA

Poderia ser um post referenciado como um Hall of Fame da BD Mundial (da qual faz parte pela Will Eisner Award Hall of Fame), mas não será porque neste específico post debruçar-me-ei apenas no álbum agora lançado pela Editora ASA e no mistério nele abordado . Este novo álbum que se encontra disponível apenas na cadeia de lojas FNAC é uma reedição, pois em parceria com o jornal O Público já tinha sido editado em Portugal. Mas esta é uma edição mais composta e que merece brilhar numa qualquer colecção. Ao contrário da primeira edição, esta é a cores (não será isto que a destaca) e traz-nos uma maravilhosa introdução de Marco Steiner com fotos de Marco D’Anna, que nos remete para alguns dos mistérios que ensombram ainda hoje a aparentemente recente História da humanidade. Todo o arranjo do álbum é bastante cuidado na edição cartonada e limitada a mil exemplares com um mini-poster de oferta por 33,5 euros; será em breve lançada a edição brochada.

Para quem conhece Hugo Eugenio Pratt no registo do seu mais famoso personagem, Corto Maltese, sabe da predilecção do autor em delinear para o seu anti-herói argumentos intrínsecos entre lugares, mistérios, fábulas, cultos, seitas, religiões, organizações menos claras, magia e a própria História. Desde a primeira história de Corto Maltese, que embora fosse uma balada lacónica entre a saudade, nostalgia, lealdade e amor, já a História ocupava um lugar cimeiro e o autor demonstrava uma atracção irresistível pelo esoterismo e pelos mistérios associados. Seja numa maravilhosa e espectacular “As Célticas” em tom “Shakesperiano” de um sonho de uma noite de verão a uma melindrada descrição revolucionária; seja numa “Fábula de Veneza” e seus misteriosos pátios repletos de símbolos cabalísticos, dos ofícios e das respectivas lojas que só os iniciados saberão interpretar e que estão ligados ao próprio nome de Corto Maltese (corto, pátio em italiano, do Maltês agora denominado pátio Contarini del Bovolo, em Veneza); seja “Sob o Signo do Capricórnio” e de uma magia milenar provida da sabedoria de quem será, eventualmente, secular, associada às crenças negras que floresceram nas cândidas terras e praias Sul-Americanas, em busca do passado e de um tesouro e à descoberta do amor; seja uma miríade de outras situações descritas nas fantásticas aventuras do lacónico marinheiro o esoterismo está sempre presente acompanhado de figuras, personagens, que acentuam ainda mais o tom que o autor transmite de uma realidade que parece ser sonhada, ou de um sonho que se assemelha à realidade. Destaco, de todos os personagens, o mais evidente, recorrente e constante: Rasputine (Raspa, para os amigos). Foi uma figura da História Russa, influente junto da corte no período final da Rússia Czarista, odiado por aristocratas e povo o monge era protegido da Czarina Alexandra Fedorovna, o que, ultimamente, não o salvou de ser assassinado; a mística e o comportamento devasso a ele associados valeu-lhe fama até aos dias de hoje. Hugo Pratt cria o seu Rasputine com semblantes, mística e vilanagem afamada muito parecidos ao real Grigori Rasputine, fazendo dele um improvável “comic relief” e um paradoxo enquanto personagem sendo uma das mais bem-amadas pelos leitores que acompanham as viagens do romântico e bem-intencionado marinheiro das argolas. Muitos outros personagens, mesmo os mais efémeros são também assim baseados em figuras da vida real e de outras obras literárias ou cinematográficas que o autor via como fundamentais e fascinantes para uma melhor construção do enredo, muito há semelhança da sua maior e assumida influência, Milton Cannif. Neste álbum, “Mu”, já no final, Corto Maltese encontra um velho chinês já moribundo de nome Soong; este é pai de um dos personagens da aventura de Corto na Sibéria (Xangai-lil) e, como esse personagem feminino, o pai também é baseado numa figura da História real (Charlie Soong, multimilionário Dragon Head da Triad).

“Mü, a cidade perdida” é o último título das viagens, aventuras de Corto Maltese. Serializada de 1988 a 1989 na revista de viagens Corto Maltese foi sem dúvidas a mais sonhadora de todas as aventuras de Corto; O autor, na narração: “E com este “até à vista”, começa a mais estranha das aventuras de Corto Maltese”. Reúne alguns personagens que já tinham acompanhado Corto em outras aventuras, se bem que a cronologia das suas aventuras seja sempre difícil de seguir, e outros personagens que aludem a figuras históricas como é apanágio do autor introduzir. Ligada aos mistérios que o mundo ainda nos oferece, existe um em particular que acende tanto o folclore popular como a sociedade científica e, dizem, até os departamentos estatais de informação privilegiada. Desde o fenómeno do Triangulo das Bermudas e os relatos a este associados, que até hoje carecem de alguma explicação científica, mas não de grande cepticismo, até ao desaparecimento da mítica civilização Atlante, já há muito referenciada por Platão, os fenómenos e as crenças abundam no imaginário colectivo. Umas com mais força do que outras pelos textos, contos, crenças e estranhos relatos (que teimam em desaparecer em situações que dificilmente se podem atribuir a acidentes) que ainda hoje perduram. Um desses mistérios é o de uma civilização muito antiga, anterior ou contemporânea à mítica Atlântida, que terá desaparecido há aproximadamente 12.000 anos atrás. Referencias a essa civilização encontram-se nas crenças populares e religiosas de muitas civilizações mais recentes, no entanto dispersas quando ainda o mundo era habitado por pessoas que desconheciam a existência de terras para além do mar que delimitava as suas. Mesmo na comunidade científica, embora não passando de teorias por enquanto impossíveis de serem de facto comprovadas, reúnem interesse e são consideradas como hipóteses com algum valor no contexto da arqueologia e da própria História da humanidade. O continente perdido de Mu ou também conhecido por Lemuria é um dos grandes mistérios da humanidade, sem dúvida, e não poderia ter deixado de ser objecto da enorme paixão de Pratt pelos mistérios, logo, de exploração para mais uma aventura do Corto Maltese. http://ilhadeatlantida.vilabol.uol.com.br/mapas/mupg.html (para terem uma ideia do mistério). http://pt.fantasia.wikia.com/wiki/Mu para melhor aprofundarem a questão do mistério. A paixão por este mistério está bem expressa na história deste maravilhoso álbum pleno de referências (chamo a atenção para os livros que estão nas prateleiras do barco do personagem Levi Colombia).

Não é certo se os mistérios de Mu e da Atlântida não serão o mesmo; se Mu desapareceu há 25000 ou se há 12000 anos atrás; se existiu (o que ajudaria a explicar muitas “buracos” na evolução e migrações do Homem) no Pacifico ou se no Indico ou (a mais provável) abrangeria os dois Oceanos: Lemuria, o outro nome porque era conhecida, deve-se aos Lémures de Madagáscar, ilha que possui uma fauna e uma flora que a distancia em termos evolutivos em dezenas de milhões de anos do continente Africano, mas onde se podem encontrar as mesmas espécies ou primos muito próximos na Malásia. A actividade vulcânica dos arquipélagos do Indico/Pacifico e a destruição de Krakatoa poderão apontar que o mesmo possa ter acontecido numa escala muito maior anteriormente e que o fenómeno tenha levado a um tsunami de proporções bíblicas, um dilúvio. Muitos dirão que se realmente tivesse existido um continente assim tão grande, com 65 milhões de pessoas, hoje já se teriam descoberto algumas provas disso. De facto já se descobriu muitas coisas que serviram apenas para adensar o mistério: as placas de Naacal; as ruínas de uma cidade afundada ao largo de Cuba; outra ao lado do Cambodja com cerca de 6000 anos e já conhecedores da escrita; o enganador código de Truano e o Popol Vuh Maia; o suposto “povo” Toltek, que terá sido uma má tradução e apenas quererá dizer o equivalente a “Construtor” em Maia, ou “Tekton” no Grego; as estruturas de Yonaguni ao largo do Japão; o mistério da ilha de Páscoa e as linhas de convergência geometricamente perfeitas entre as quatro hipotéticas cidades da passagem (Chichen Itzá, Posseidónis, Ur, Angkor) e a ilha de Páscoa e seus Moais a olharem para um céu de há 12000 anos atrás; os naturais de Páscoa, descobertos em 1722 eram polinésios de tez branca e cabelos ruivos, conforme as lendas de Mu; as crenças Khmer, Tamil, Hindu e Egípcia do Delta, assim como as pré-colombianas e algumas Maori convergem todas neste ponto, embora os membros das suas civilizações nunca se tivessem cruzado; as crónicas da antiguidade Grega, que se assumiam interessadas e já conhecedoras das lendas, ou histórias sobre a Atlântida e Mu, assim como a criação do mar Mediterrânico e as colunas de Hércules, pelo colapso do istmo mediterrânico; os contactos dos Fenícios com o dito muito antigo povo de Tartessos, descritos por Estrabão na sua “Geographia” e o conhecido cataclismo vulcânico nas Cíclades que varreram a civilização Minóica em 1500 A.C..

Hugo Pratt desde as primeiras páginas explora algumas destas particularidades da lenda e junta-lhe mais algumas, como o mistério do desaparecimento da aviadora solitária Amelia Earhart. Esta é uma história que para ser apreciada na sua plenitude deverá ser acompanhado de um particular gosto pelos mistérios da humanidade ou então de uns cogumelos mágicos. A forma como cada um as encara, caberá a cada um. É certo que Pratt era um sonhador e um viajante, seja em que sentido for e, mais uma vez, conseguiu traduzir com grande inspiração a lenda ou o mito num sonho digno de ser sonhado, neste caso lido. Que pena que este homem nos tenha deixado com apenas 65 anos, mas viveu mais do que muitos homens se tivessem vivido até aos 100 anos, estou seguro. Que sonhos, que lendas, mitos e mistérios teria ele ainda traduzido? Perdoem-me a saudade. Leiam este livro e queiram perceber para além do que está lá escrito e desenhado, o Hugo Pratt apela-nos em todas as suas aventuras para que façamos as malas e partamos por nós à procura do que ele também viu. Como qualquer grande viajante, Pratt gostava de partilhar as suas experiências, que o tinham enriquecido. As revistas que ostentavam o nome do seu personagem estandarte eram revistas de viagens e não de BD.

(As imagens aqui colocadas foram retiradas da internet, por eu não ter (ainda!) um scaner. A capa da edição Portuguesa é igual à colocada no cabeçalho deste post).

quarta-feira, 28 de abril de 2010

MIGUELANXO PRADO

Já por algumas vezes alguns amigos que vão a minha casa, e que lá vão dando uma olhadela neste espaço, me têm perguntado porque é que eu, neste espaço, dou tanta ênfase aos comics quando o que eles vêm mais nas prateleiras de minha casa é BD Franco-Belga? Pois, realmente o que está mais visível, por estarem nas prateleiras, são os álbuns de BD Franco-Belga; os comics estão todos encaixotados e por serem menos volumosos não parecem ser mais (mas são), e as caixas, por sua vez, estão guardadas nos armários. Por outro lado, os hardcovers Norte-Americanos e TPBs, apesar de serem já alguns, são relativamente recentes no mercado editorial comparado com as edições Europeias em formato de álbum. Mas não sei se têm razões ao apontarem que dou pouca visibilidade aos álbuns de BD ditos Franco-Belga que lá estão expostos, pois tenho tido o cuidado de variar o conteúdo deste blog. Uma vez que não sigo um padrão de anunciar neste espaço novas publicações ou novidades no mercado editorial na generalidade (mesmo nos comics), comprometo-me a dar mais visibilidade a esses álbuns e aos seus magníficos autores (tenho que comprar um scaner!).

De seu nome Miguelanxo Prado, é um dos expoentes da BD mundial e um dos melhores, mais consagrado e reconhecido autor de BD da nossa vizinha Galiza. Natural de A Coruña, nascido em 1958, com formação em arquitectura, escreveu novelas e foi artista plástico antes de se iniciar na BD. Com variadíssimos prémios e nomeações internacionais, dos quais se destacam o Alph’Art para o melhor álbum estrangeiro em Angoulême por duas vezes, o Eisner para melhor antologia e a nomeação para o Harvey.

É um autor muito atento ao mundo, seja na sua beleza bucólica seja na espécie inteligente (?) que nele habita. Em 1988, pela Humanöides Associés publica o seu primeiro trabalho na BD: “Chienne de Vie”(“Quotidiano Delirante”), onde retrata de forma mordaz e plena de sarcasmo o comportamento social Humano. O sucesso foi imediato e logo se seguiram outras obras onde pôde abordar outras formas de se observar o comportamento Humano. Ainda em 1988 publica um magnífico trabalho onde vislumbra uma hipotética História do comportamento Humano enquanto ser social, com cenários verdadeiramente visionários que culminam num optimístico mas atribulado processo evolutivo para a espécie Humana, onde os Simios e os Cetáceos Delphinidae (vulgo Golfinhos) ocupam um lugar especial; é um trabalho humanista de grande profundidade e que para mim será um dos seus melhores registos: “Fragmentos das Enciclopédia Délfica”. Em 1989 retorna ao registo do seu primeiro álbum com o título “C’est du Sport” (“Crónicas Incongruentes”). Em Portugal, não se seguindo a cronologia de publicação dos títulos em Francês, não é por isso que o trabalho do autor se perde numa lógica de afrontamento com a sociedade civil. Desde a observância de situações que poderão parecer serem levadas ao extremo pelo autor, como também no caso da “Mansão dos Pimpões”, a verdade é que não existe extremismo algum e que as coisas se processam, ou pelo menos se sentem, exactamente dessa forma, deixando o bom cidadão, aquele que é honesto, cumpridor, civilizado, bem-educado ou simplesmente com “vergonha na cara” completamente desarmado pela súcia de FDPs (que não merecem outro nome) que cada vez mais se vão semeando por este mundo fora! Aquela campanha televisiva Portuguesa que aludia à necessidade de criar consciência cívica encontrava exemplos que apenas roçam o que o “Chico-esperto” é capaz de fazer (“Portugal não é só teu”, lembram-se?). Miguelanxo Prado consegue chafurdar no “Chico-espertismo” abundante na nossa sociedade e sempre levados em conta com orgulho pelos que o encaram como modo de vida.

Não é só o escarnecimento da sociedade civil que Miguelanxo Prado explora. A exploração do Homem também é seu apanágio e fá-lo com absoluta distinção na obra “Traço de Giz”, onde se debruça sobre a capacidade de sonhar do Homem e pela sua, por vezes, incapacidade de distinguir o sonho da realidade. Com este álbum ganhou o seu segundo prémio em Angoulême. O primeiro foi com uma fantástica história aludindo ao género policial-noir à Americana mas com um tom marcadamente Ibérico (Português também, pois então!): “Manuel Montano: O Manancial da Noite”. Neste álbum trabalhou com o argumento de Fernando Luna e conta a história de um detective privado Português praticamente acabado, Manuel Montano, a quem lhe é dada a missão de encontrar o manancial da noite: no livro, o autor: “- Não queremos que sejas um detective falhado como o Bogart. Por isso preparámos-te na escola de detectives de Lisboa, ao som das navalhas e do fado”. Embora Montano não esteja certo do que procura, não se pode dar ao luxo de rejeitar um trabalho e dedica toda a sua determinação a não deixar que este trabalho termine com muitos outros: sem dinheiro! É um livro com alguns personagens bem poéticos e interessantes (destaco o personagem "Pescas"), que aludem brilhantemente ao bas-fond pejado de figuras malandras acompanhadas de pratinhos de salada de orelha de porco (que parecem salada de polvo) nas tascas e fado.

Um título que merecerá o seu destaque é a adaptação da história infantil “Pedro e o Lobo”, originalmente concebida para educar musicalmente as crianças e ao mesmo tempo demonstrar-lhes os perigos da mentira. Todos os personagens na obra original de Sergei Prokofiev são representados por um instrumento diferente (ou secção do mesmo género de instrumentos, por exemplo: as Cordas representam o Pedro), onde a sonoridade desses instrumentos é por sua vez representativa da personalidade de cada personagem. A adaptação do Miguelanxo Prado, segundo ele, não é uma versão dedicadamente infantil, mas antes uma versão honesta.

Outro título que nos toca particularmente é “Carta de Lisboa”, escrito por Eric Sarner e maravilhosamente ilustrado por Prado. Perguntaram-lhe como é que tinha sido para um Espanhol a honra de ilustrar esse título, ao que Prado respondeu: “Para um Espanhol eu não sei, mas para mim…a relação dos Galegos com Portugal é muito particular, não tem nada a ver com o resto de Espanha. Devido à fronteira, a gente passa de um lado para o outro e, mesmo economicamente, a relação da Galiza é muito mais forte com Portugal do que com a própria Espanha. (…)”.

A sua técnica é fabulosa e faz-nos crer que utiliza diversos materiais nas suas ilustrações; refere, numa entrevista que deu ao Universo HQ, que utiliza tudo o que ajude, mas que praticamente todas as suas obras são em acrílico, “Traço de Giz” e “Pedro e o Lobo” também. Desde a sumptuosa cor ao preto e branco (“Stratos” e “Fragmentos da Enciclopédia Délfica”) ou mesmo à sépia (“Tangências”) o seu estilo é marcado e inconfundível.

O álbum “Tangências” leva-nos novamente às relações humanas. É um álbum que traduz a superficialidade com que muitas vezes nos dedicamos às relações com outros, traduzindo-se tangenciais, num dado momento na vida de cada um. É um álbum negativista, ou apenas sincero, que reflecte as relações pessoais superficiais. O tom sépia impresso adensa a emoção sentida por quem lê esta obra, da qual não consegue fugir sem introspectiva reflexão.

Sem dúvidas, o álbum que levou o Miguelanxo Prado ao estrelato do firmamento mundial foi “Traço de Giz”. Este álbum, conforme já o escrevi acima, alude à ténue fronteira entre o sonho e a realidade e à capacidade, ou falta dela, de discernir entre ambas. As relações humanas são esmiuçadas de forma sublime, o que nos leva a acreditar piamente que o autor tem uma grande veia de sociólogo e ou psicólogo. Uma vez mais, Portugal (os Açores, mais concretamente) está presente no autor.

O último álbum lançado no mercado foi “De Profundis”. Este álbum não é BD, antes uma transposição de algumas imagens criadas por Prado para o seu filme de animação com o mesmo nome, acompanhadas por uma narrativa poética. Enquanto o filme é uma sucessão organizada de vinhetas acompanhadas apenas por música, não seguindo o normal padrão do cinema de animação, assumindo-se como pouco convencional ou alternativo no género, o álbum recebe o argumento escrito. No entanto, o livro funciona autonomamente do filme. A história debate-se num amor pouco convencional entre um homem que se aventura num barco para pintar o habitat marítimo e uma violoncelista que mora numa casa no meio da água, onde o sonho se mescla com a realidade. O filme foi premiado com o “Goya” de melhor filme de animação.

Não poderia acabar este post sem referir que este autor também já deu o seu contributo, enquanto artista, no mercado Norte-Americano dos comics e não só. Foi responsável pela arte na história “Dream: The Heart of a Star” no maravilhoso “Endless Nights” da série Sandman do conceituado Neil Gaiman, que contou com a colaboração de inúmeros grandes vultos da BD; talvez não tenha sido um acidente ter sido escolhido para uma das mais importantes histórias nesta obra, que alude a muitos acontecimentos que irão ter lugar no futuro dentro da série. Também no cinema de animação deu o seu enorme contributo para a série MIB (Men in Black) ao ser o character designer”.

Em Portugal temos publicada toda a obra deste autor, praticamente. O autor encontra-se a trabalhar numa novela gráfica que, segundo desejos já manifestados, deverá ser publicada também em Portugal ainda durante este ano (veremos!).
De resto, é um autor incontornável na BD dita Franco-Belga, que nos diverte e assombra ao mesmo tempo, com os seus delírios e suas introspecções mundanas, assim como com a sua maravilhosa técnica. Recomendo vivamente.