Os seus autores são Robert Venditti e Brett Weldele. O primeiro escreveu este fantástico mundo habitado por andróides, o segundo, obviamente, desenhou-o.

Venditti não é o habitual autor de comics que normalmente aqui vos trago, ele é apenas (que é como quem diz!) conhecido por este trabalho. Venditti era daqueles que considerava que os comics eram uma coisa de miúdos. Foram os clientes da loja onde ele trabalhava, uma livraria, que o convenceram a ler comics, tendo escolhido “Astro City” do Kurt Busiek para começar. Em boa hora o fez, pois vislumbrou um novo mundo, o que o levou à Top Shelf e depressa a esta obra de se lhe tirar o chapéu.
Também praticamente um desconhecido, Brett Weldele já tem trabalhado na indústria dos comics, mas discretamente. Destaco, dos poucos trabalhos que lhe conheço, “Couscous Express” com o Brian Wood (“DMZ”) e a mini-série da Marvel, “B Sides”.
Portanto a surpresa de ler este livro de tão ilustres desconhecidos foi melhor do que poderia

desejar ou imaginar, sem ser um poço de originalidade e de
art-exquisite. Claro que Hollywood ajudou bastante a torná-los mais conhecidos. A “Meca” do cinema Norte-Americano tem feito muito por si, ultimamente, com a preciosa ajuda dos comics. É notório o número crescente de argumentos adaptados ao cinema que provêm da indústria dos comics, sejam
mainstream, sejam
indies. Era de prever, com o crescimento da indústria dos comics e com a sua tendência em se tornar mais adulta, que autores de talento fossem apanhados pela oportunista indústria cinematográfica. Até onde seria possível a Hollywood reciclar os velhos filmes? Acredito que eternamente! Obviamente que adaptações literárias ao cinema não são inéditas, mas o maná que os comics proporcionam é “ouro-sobre-azul” para os grandes estúdios. Nos comics têm a vantagem do
story-board já estar previamente executado e o cálculo do orçamento necessário ser sempre mais fácil de pré-elaborar, a aceitação dos argumentos pelo público, entre muitas outras razões que beneficiam os estúdios produtores.

Esta história é polémica apenas pela ideia. O principal mote da narrativa é a polémica, pois é através desta que o autor tenta nos atingir. Envolta num caso de mistério policial que alguns viram como “
noir” mas eu não (desculpem-me!) é, no fundo, a polémica que alimenta todo o enredo que se desenvolve e não o caso de polícia
de per si.
O autor explora um bem que seria bastante desejável na actual sociedade Norte-Americana cada vez mais acossada pelo medo. Desde o medo de ter que sair à rua, o medo das doenças, o medo dos fumadores, o medo da poluição, o medo de interagir com outras pessoas, o medo de ser assaltado, o medo de se ser violada, o medo do terrorismo, o medo, sempre o medo que é sobejamente explorado por quem nele veja proveito em relação aos seus próximos. Este medo não necessita de ser patológico, basta uma centelha, um frémito, para que a paranóia depressa se instale, e nem precisa de ser bem vendido.
Num ambiente assim, o autor imagina um mundo, o nosso mundo, que se vê com a oportunidade

dada (leia-se vendida) por grandes empresas em torná-lo mais seguro para os seus habitantes. Qualquer Ser Humano que tiver dinheiro ou apenas capacidade de endividamento poderá adquirir uma unidade autónoma de realidade virtual que, na vez do seu dono, enfrentará o Mundo face a face.
Fantástico, não? Obviamente. É como o plástico: “É Fantástico!”, e o DDT e o que é radioactivo! Em pouco tempo metade da população adquire uma unidade enquanto a outra metade prefere levantar-se e gritar “blasfémia”. Dão-se motins e blá-blá-blá…a velha história do costume. Esta informação histórica dá-se nas primeiras páginas do livro e serve para localizar o leitor neste atípico e quase admirável mundo novo.

Um artigo interessante no imaginário Journal of Applied Cybernetics, que também aparece logo nas primeiras páginas do livro, vende-nos a excelente ideia que é possuir, todos possuírem, uma unidade Surrogate. Tem o título de “Paradise Found”, em contraponto, creio eu, com o “Paradise Lost” de Milton e todos os seus pensamentos inerentes adaptados ao séc. XXI, em vez dos mais, digamos, simples ou monocromáticos mas bastante equivalentes conceitos do séc. XVII. Possibilidades e realizações na era do Surrogate, começa o artigo, dissertando depois nas inúmeras mudanças dramáticas que rearranjaram a vida de todos que abraçaram a tecnologia, apontando apenas o aspecto positivo, ou por ignorar ainda os pontos negativos ou por preferir ignorá-los. É um facto que o Surrogate não foi uma ideia pacífica e a sua utilização pela esmagadora maioria da população (95% de penetração no mercado) foi uma conquista absoluta de enorme sucesso em tão pouco tempo. Aponta o artigo que existem três grandes vertentes sociais que tornam Surrogate um indiscutível sucesso: Género e Raça; Políticas de Segurança, e Crime; Saúde Pública e Individual.
Género e Raça: A vantagem de quem é de uma qualquer raça poder escolher um Surrogate que

melhor o insira num qualquer grupo ou profissão para poder aceder a um nível de vida melhor ou em conformidade com os seus desejos, sejam eles de que natureza for. O mesmo se aplica ao Género; existem empregos que são mais acessíveis a um determinado género, o Surrogate possibilita a qualquer Género adoptar outro para sua conveniência profissional ou outra.
Políticas de Segurança, e Crime: As estatísticas do crime violento desceram abruptamente uma vez que o operador do Surrogate pode desligar-se da sua unidade autónoma assim que seja vítima de um crime violento. Com isto, não sofre fisicamente nem tão pouco emocionalmente pois já não se encontrará no local do crime; também há uma maior colaboração com as forças policiais quanto ao testemunho ocular, gravado pela unidade e guardado num disco remoto. Embora o crime não violento (assalto a residências, fraude, burla, etc.) seja mais comum e assola com maior incidência as estatísticas, não estando este tipo de crime imune ao facto da utilização do Surrogate, não é de minorar o facto do crime violento ter baixado drasticamente. Economicamente as repercussões são de uma também baixa dos gastos no todo do sistema judicial, em especial nas prisões. As forças policiais saem reforçadas enquanto são obrigadas a operar com os Surrogates, baixando as taxas do risco inerente à profissão, tornando-se esta mais aliciante aos potenciais candidatos.

Saúde Pública e Individual: Uma vez que são os Surrogates a interagirem uns com os outros, salvaguardam a população de humanos de doenças infecto-contagiosas, algumas potenciais pandemias; acidentes de trabalho; doenças derivadas de certos vícios, nomeadamente o tabaco. Neste ponto é notório a ênfase que se dá a esta indústria que movimentava biliões e que vinha a definhar (se é que definhar seja o termo mais adequado!), mas de acordo com o artigo, o Surrogate tem a habilidade de fumar e proporcionar a euforia momentânea, o cheiro e o sabor do fumo ao seu utilizador através da sua ligação sensorial a este. Isto trará grandes benefícios aos utilizadores das unidades Surrogate, ao evitarem todas as maleitas derivadas de certos hábitos, sem perderem o prazer proporcionado pelos mesmos. O Sistema Nacional de Saúde também será um dos grandes beneficiários desta simbiose, uma vez que o orçamento anual dispendido no combate às patologias associadas a certos prazeres seja canalizado para outras áreas. Patologias sexualmente transmitidas serão também praticamente inexistentes, acabando com o pesadelo do Síndrome da Imunodeficiência Adquirida nas sociedades que adoptem a tecnologia Surrogate, como exemplo mais flagrante.
Tudo isto se encaixa num cenário de resto muito pouco

futurista, onde as intolerâncias do costume pululam na sociedade. Acompanhamos dois detectives a quem lhes calha um caso raro de ataques a unidades Surrogates e que têm por finalidade aparente ou óbvia criar a desordem e forçar o colapso do actual status quo social dominado pelo mundo das unidades virtuais autónomas, que segundo alguns inibem a verdadeira vida que Deus desejaria para o Homem, na vez da também aceitável visão de que Deus nos deu livre arbítrio para escolher a forma de vida que pretendemos levar (novamente Milton e seu poema). Não vou adiantar mais nada sobre o enredo, pois este merece ser lido e não contado.
Aconselho com veemência a leitura desta obra intrínseca de conceitos divinos e humanos, logo morais, desenhada a traços simples e crus, pintados ora a tons de sépia ora a tons de azul ou cinzento.