Bem…depois de ter escrito este post, verifiquei que tinha material para dois ou três! Enfim…como só actualizo este blog quando o rei faz anos, os poucos mas bons que lá vão lendo isto poderão se entreter (ou torturar) durante um bom período.
Manga, pois então (desculpa lá Verbal!)! Tornou-se um vício difícil de contornar, felizmente um “bom vicio”. Tenho lido (leia-se, devorado!) série atrás de série. Todo este entusiasmo não advém só das narrativas extremamente bem elaborados e dos desenhos que as exprimem, também advém da própria cultura japonesa que se vai abrindo para além da até agora estreita e um tanto ou quanto mal concebida ideia que dela fazia. O género e estilo Manga são extremamente ricos e ainda só agora os comecei a experimentar, mas acredito já distinguir o que gosto e o que não gosto muito…acho! Pela minha idade, uns belos (AH-HUM!) 40 aninhos, mas com um coração de moço novo (até me engasguei!) consigo apreciar em especial dois estilos demográficos de Manga que, à partida, até poderão parecer muito colados: o Shonen e o Seinen. De facto estes dois estilos são bem distintos no conteúdo.
Por vezes apetece-me Seinen e outras vezes só tenho pachorra para Shonen. Já li Josei (para mulheres) e desfolhei algumas Shojo (para miúdas) e não fizeram, realmente (é bom sinal!), o meu género; mas não deixou de ter o seu interesse.
Shonen é um género de Manga para jovens que irão dos 11 aos 18 anos (dependendo da maturidade alcançada por cada um, independentemente da idade); Seinen é um género destinado à faixa etária compreendida entre os 18 e os 40 anos (não é rígido, obviamente). A caracterização recai sobre o título aquando da sua primeira publicação em revista especializada no respectivo género.
Em alguns Seinen figuram personagens na idade típica dos Shonen, como personagens em idade escolar, mas as interacções são, em comparação aos Shonen, mais violentas, mais retorcidas e com cenas de sexo ou nudez, logo demarcando-se do público mais juvenil dos Shonen, onde também existe violência e nudez e sexo sugerido mas mais suave. É preciso entender que o Japão tem um conceito muito diferente do ocidente em matérias de censura a conteúdos, existem algumas séries que no Japão são Shonen, mas no ocidente são consideradas para maiores de 18 anos; o contrário também se observa (Seinen que no ocidente têm classificações para 16 anos). O Shonen tem mais cenas de acção, e o espírito implicado nos argumentos servem de exemplos ou guia de conduta e preparação para os jovens que lêem este género de Manga. A orgulhosa, e muito diferente em muitos aspectos, cultura japonesa está expressa na Manga e é indissociável do povo japonês, a ênfase dada aos valores considerados bons na sociedade ajudam a preparar as gerações futuras através da leitura da Instituição que a Manga é. Daí que seja comum ler argumentos pejados de situações de camaradagem, jogos de equipa com superação de desafios, competição e perseverança, em que a vitória deve ser alcançada com todo o esforço e mais algum e em alguns casos a todo o custo, num conceito moral que nos ultrapassaria, mas longe de ser hipócrita ou apenas de querer parecer politicamente correcto. Em geral, os Seinen contêm personagens com idades compreendidas entre os 20 e os 40 anos, e exploram os problemas e solicitudes típicas da idade, aprofundando vertentes que podem ir desde a introspecção, dos negócios à política, da História à ficção científica, com referências e níveis de complexidade que exigirão uma bagagem cultural e mesmo vivência empírica que os mais novos ainda não têm, isto para além da muito provável seca que apanham com assuntos tão aborrecidos. Também existe Manga que foi crescendo com os leitores, por exemplo a série “Cavaleiros do Zodíaco” começou por ser um Shonen e, acompanhando os leitores que se afeiçoaram à série, cresceu com eles e tornou-se um Seinen. Outra, das grandes diferenças, encontra-se numa faceta que para nós ocidentais estará na mão do tradutor: a escrita. Os Seinen são escritos com Kanji de nível universitário.
O que é o Kanji? Pois bem, uma das facetas da Manga, que a nós pobres ocidentais nos irá sempre escapar (a não ser que se inscrevam num curso de japonês!), é a impressão dos caracteres que exprimem a língua japonesa (óbvio). O nome japonês para a língua japonesa é “Nihongo” (日本語). Devido às particularidades da escrita japonesa, a impressão da mesma, onomatopeias incluídas, é também uma forma de arte gráfica. Cada autor terá um estilo muito próprio de fazer exprimir os seus personagens, conferindo-lhes mais gravidade, seriedade, gozo, candura ou doçura, etc, não só pela expressão facial e corporal desenhada mas também acentuada pelos caracteres utilizados e o próprio desenho desses caracteres. O alfabeto japonês é constituído de dois silabários, Hiragana (ひらがな) e Katakana (カタカナ), e de um enorme número de ideogramas apelidados de Kanji (por exemplo: 漢字). Logo, muito basicamente, o que é o sistema de escrita japonês?
O sistema de escrita japonês não foi inventado numa base totalmente original, ao invés, conforme outras expressões linguísticas escritas no mundo, colou-se ao sistema cultural geograficamente predominante, neste caso o Chinês. No caso do Inglês (por ser a língua mais utilizada nas traduções), que é de origem Germânica e em que só alguns dos substantivos e adjectivos que o constituem são estrangeirismos de origem latina, a maioria da sua língua foi adaptada ao alfabeto romano devido às invasões desta civilização a terem tornado predominante (daí ser por vezes de difícil pronunciação quando lido, pois foi adaptado a um sistema de escrita em que a pronúncia é diferente: e=i; u=iu, etc.); no entanto a família linguística Germânica e Latina é a mesma (Indo-Europeia). O Japonês passou pelo mesmo em relação ao Chinês. O sistema de escrita Chinês é constituído por milhares de símbolos idiomáticos complicados (mais de 10.000) actualmente reconhecidos pelo alfabeto Romano como “hanzi”, no caso japonês dão pelo nome de “kanji”. É claro que os japoneses ao longo do tempo inventaram kanji próprios e apenas por eles utilizados, e os kanji e os hanji são aprendidos gradualmente ao longo dos níveis escolares; o próprio Estado define quais os ideogramas indispensáveis (no Japão são obrigatórios cerca de 2000 no nível universitário mais alto, mas ao todo serão cerca de 3000). A tradução do kanji para o alfabeto romano dá origem às traduções de, por exemplo 黒鷺(the Kurosagi)死体(corpse)宅配便 (delivery service). Ao contrário da pronunciação do Inglês no alfabeto romano, o kanji Japonês adapta-se muito bem à pronúncia da língua inglesa, isto porque quem desenvolveu essa tradução foi o Inglês James Curtis Hepburn (Sistema Hepburn). O caso Chinês não se aplica ao ocidente por ter sido desenvolvido para possibilitar o entendimento do Mandarim pelos vários dialectos chineses (sistema Pinyin): como exemplo, “hanzi” pronuncia-se qualquer coisa como “n-tsuh” (“kanji”= “khan-gee”). Associado a tudo isto existem dois estilos silábicos que possibilitam a escrita de palavras estrangeiras e outras (mesmo as em forma de ideograma), também a escrita em teclados de computadores e outros, e simplificar a expressão e tradução dos textos: o “Katakana” que é um estilo formal, e o “Hiragana” que é um estilo mais desprendido tipo calão. Estes dois estilos caracterizam-se pela fonética, sendo um género de alfabeto que se compreende por sons formados por 5 vogais (a, i, u, e, o, por esta ordem) e de 46 kana representado por uma (monografo - goujun) ou duas (ditógrafo - yoon) consoantes agregadas a vogais (“ka”; “se”; “tsu”; onde o som representado pela letra ocidental “n” é o único que não é agregado), isto muito basicamente pois ainda existem outras concordâncias. Não vou explicar os Furigana (vejam na internet!). O Katakana e o Hiragana têm também um enorme relevo nas onomatopeias, que não são totalmente passíveis de tradução literal para a nossa língua pelo risco de se tornarem imperceptíveis; encaradas também como uma forma de arte, preserva-se a intenção e o estilo do autor (normalmente aparecem traduzidas literalmente e devidamente explicadas no final da versão ocidental da Manga). Descobriu-se que civilizações diferentes ouvem os mesmos sons de maneira diferente: a onomatopeia japonesa para o som do jogo Pacman não se lê “wâco-wâco” mas “paco-paco”, isto foi dito a um tradutor japonês e ele entendeu o som “wâco-wâco” como “paco-paco”, dizendo que estava correcto. Também a inexistência de certos fonemas trazem situações caricatas, como o caso da letra “L”não ter espelho no Goujun Kana: aparece como o som “re” (Luís lido em katakana é dito “ru i su”- o primeiro fonema “ru” é dito como o “re” na palavra “aure” e “su” é dito “sxe”. Grilo escrito em katakana é composta pelos kana “gu”, “ri” e “ro” – a vogal “u” em japonês tem a fonética igual ao primeiro “e” na palavra portuguesa “pequeno”). Os desenhos, também por si só, são bastante simbólicos ou iconográficos, ex: uma cerejeira em flor quer transmitir esperança ou proximidade de um ente querido já desaparecido; os exemplos são imensos. Se ainda estiverem a ler isto :) já devem ter percebido que não seria fácil aprender este sistema de escrita, em especial os katakana e hiragana por alguns serem, enquanto escritos, parecidos uns com os outros, e, também, que devido a estas particularidades perdemos um bom bocado da arte e dos sentimentos expressos nos Mangas, logo, do prazer completo que seria ler um no original. A própria e muito característica ordem de leitura de um Manga é também extremamente importante (ver imagem à esquerda): o japonês é lido da direita para a esquerda e de cima para baixo, mas também poderá ser lido de baixo para cima e mesmo da esquerda para a direita em casos muito particulares que eu não vou aprofundar devido à complexidade de me fazer entender como deve ser, correndo o risco de cair em paradoxos difíceis de explicar e que requeriam mais e mais linhas neste post (ouvi alguém a agradecer :) . O japonês é uma língua tramada para os ocidentais e as traduções, segundo os próprios tradutores, são mais uma arte do que uma ciência. As referências culturais são sempre imensas, logo, necessitam de muita paciência e gosto por parte de quem lê em aprender. Os bons tradutores reconhecem o gosto e a necessidade dos leitores perceberem todo o contexto da narrativa, portanto, no final de cada livro, há um género de compêndio onde se explica tudo isso.
Apesar da escrita e leitura ser um “bico-de-obra”, a língua falada é considerada simples de aprender…enfim…dizem que sim!
Outra particularidade da cultura japonesa é os graus honoríficos. A cultura japonesa assenta numa elevada dose de demonstração de respeito pelo próximo, que remonta ao período feudal. As Mangas no original obviamente que têm essas reverências, e as melhores traduções para outras línguas mantêm-nas também no original. Isto porque essas reverências por si só demonstram as ligações que existem entre as pessoas (os personagens) sem que seja necessário grandes explicações para entender certos contextos. A boa educação nas relações interpessoais na cultura japonesa é uma faceta critica que peremptoriamente não pode ser descurada, com risco absoluto de, em caso contrário, seriamente ofender, destruindo relações sejam de que tipo for. Quando nos dirigimos a alguém japonês (em especial, no Japão) teremos que utilizar o honorífico como um sufixo ao nome da pessoa ou, em certos casos, apenas o honorífico: “Akira-san”; “Otomo-sensei”, ou apenas “Sensei”. O nome de família normalmente é o primeiro enquanto o segundo nome é o próprio: Katsuhiro Otomo (大友克洋). Os nomes escrevem-se com kanji e/ou katakana e como noutras culturas têm terminações como “o filho mais velho”, “o filho mais novo”, “a filha”, etc, e também podem significar literalmente “o mais bravo de todos” ou “vento do este”. Mas isto complicar-se-ia se eu entrasse nos pormenores (e aqui os pormenores contam todos!), mas toda esta conversa serve apenas para vos dar uma ideia de como as coisas são no Japão e o porquê da Manga ser como é, dando um outro sentido de leitura e talvez uma apreciação mais maturada a quem se arriscar à leitura do género ou estilo (como preferirem). Então os honoríficos são: “-san”, o mais comum dos honoríficos, que é equivalente a Sr., Sr.ª, senhorita, é apropriado a todas as situações sociais onde a educação é exigida (e são todas!). “-sama”, este honorífico encontra-se um grau acima de “-san”, conferindo mais respeito a quem é dirigido. “-dono”, advém da palavra “tono”, que significa “Senhor” (“Lord”, no Inglês), confere imenso respeito. “-kun”, este honorífico é empregue nos nomes dos rapazes e expressa familiaridade ou carinho, por vezes é utilizado entre amigos jovens ou adultos ou também quando nos dirigimos a alguém apenas mais novo ou com um posto inferior no trabalho. “-chan”, utilizado para expressar carinho para com, especialmente, moças; também é utilizado em bebés, animais de estimação (!) e entre namorados, dando um sentido de carinho infantil. “Bozu” é utilizado para informalmente se referir a um miúdo (“puto”, em Portugal; “guri” no Brasil). “Sempai” ou “Senpai” é um título que sugere que a pessoa a que se destina é alguém sénior num grupo ou numa organização; é muito utilizado na escola quando os alunos mais jovens se dirigem aos mais velhos; Pode ser utilizado no local de trabalho quando alguém mais novo na empresa se dirige a alguém com mais antiguidade. “Kohai” é o oposto de “Sempai”, logo, é utilizado inversamente, do mais velho para o mais novo, conota respeitosamente uma situação de inferioridade. “Sensei” significa literalmente “aquele que veio antes”, é utilizado para professores, doutores, mestres em qualquer profissão ou arte. Finalmente, a ausência de honorífico (“- espaço em branco”), que é por muitos tradutores esquecida e é muito provavelmente a mais significativa diferença entre a cultura japonesa e a ocidental: a ausência do honorífico normalmente demonstra que quem se dirige tem a permissão do interlocutor a fazê-lo de uma forma muito íntima; Usualmente só as pessoas casadas entre elas, família ou amigos muito íntimos têm esse privilégio; Conhecido como “yobisute”, é extremamente gratificante quando alguém atinge esse nível de intimidade começar a tratar a pessoa pelo nome próprio sem empregar o honorífico, mas se esse nível de intimidade ainda não tenha sido atingido, o insulto poderá ser considerado enorme.
Existem Mangas para todos os gostos e preferências, dentro das demografias há diversos géneros: policiais, super-heróis, terror, ficção científica, costumes, agricultura…agricultura?! Pois é! Vai buscar-se de tudo. Os diferentes géneros de literatura estão difundidos por todas as culturas, mas nos Mangas estão deliciosamente estratificados a grupos de interesse variados. A existência de variadíssimas temáticas é um apanágio da Manga (assim como da Anime, o cinema de animação japonês).
Posto isto, cá vão algumas sugestões de leitura:
Actualmente encontro-me a acompanhar uma série Seinen (cá está: no ocidente está classificada para 16 anos) que tem como palco uma universidade agrícola: “Moyasimon – Tales of Agriculture” (lê-se “Moyashimon”). Escrito e desenhado por Masayuki Ishikawa, roda à volta de um rapaz (Tadayasu-kun) que, por alguma razão (no texto), consegue ver bactérias e com elas interagir. É um Manga especializado muito divertido de se ler, com imensos “comic-reliefs” em que o enredo ainda está apenas ocupado a desenvolver os personagens mas em que já nos apercebemos que o jovem Tadayasu se vê metido entre as maquinações de um professor excêntrico e sua estranha assistente, determinados em arrombar os segredos e em despoletar o imenso poder do mundo bacteriano, e os esquemas envolvendo experiências agrícolas dos seus colegas de universidade. Nesta série aprendemos coisas incrivelmente estranhas das culturas, enquanto palavra homónima, de diversos povos do mundo, em especial o Japão. As bactérias são os principais agentes na fermentação dos alimentos e bebidas, o Japão é conhecido também por ser o país do Saké (que é a bebida fermentada com maior teor alcoólico no mundo), por aqui podemos ver o interesse que este título poderá despertar na cultura japonesa, e, porque não, noutra qualquer. Este título é publicado em Inglês pela Ballantine Books – Del Rey imprint e encontra-se, por enquanto, no primeiro volume. É, de facto, diferente pela positiva.
Outro género bastante explorado nos Manga é os costumes. Entenda-se por costumes o modo de vida e pensamentos (alguns muito pessoais mas que reflectem a sociedade no geral) do povo japonês. Tenho lido as mundanidades de Jiro Tanigushi em “The Walking Man” (“Aruku Hito”, dito em japonês): não é uma novela gráfica (Gekiga) para amantes de acção ou longos textos, antes é uma obra de detalhe gráfico impressionante onde o personagem principal se limita a caminhar por trilhos da natureza e urbe, observando e apreciando o quotidiano e o ritmo normal da natureza e das pessoas que o rodeiam. É do melhor em termos de ilustração que já vi, Manga ou outros. É introspectivo sem perturbar, diria mesmo que é relaxante.
Ainda nos costumes, e estando eu tão interessado no frenesim que é a Manga, dei uma oportunidade a uma série que normalmente deixaria passar: “Genshiken”, que são as iniciais para “Gendai Shikaku Bunka Kenkyuu Kai" (Sociedade Para o Estudo da Cultura Moderna Visualmente Dirigida). Está muito bem escrito e o desenho é muito divertido. Simplesmente é um retrato ao estilo de vida denominada por “Otaku”, com visões partilhadas por quem a vive por dentro e por fora. “Otaku” (おたく), que literalmente significa “seu lar”, é um termo usado no Japão para designar um fã por um determinado assunto, seja qual for. No imaginário japonês, a maioria dos Otakus são indivíduos que se atiram de forma obsessiva a um hobby qualquer. No ocidente a palavra é utilizada como uma gíria para rotular fãs de Animes (cinema de animação japonês) e Manga em geral, numa clara mudança de sentido em relação ao idioma de origem do termo. Muitos membros da comunidade acham o termo ofensivo por não concordarem com a distorção de sentido do mesmo, recusando-se a serem assim chamados. O termo é normalmente utilizado apenas dentro da comunidade de fãs de Anime e Manga e de fluentes no idioma japonês, sendo portanto desconhecido para o grande público. A aplicação do termo tem origem no humorista e escritor japonês Akio Nakamori, que reparou que o termo era muito utilizado pelos fãs de Anime e Manga, tornando-a tragicamente popular quando a publicou num livro seu em 1989, “M no jidai”, para caracterizar o personagem principal; este livro baseava-se na história verídica de um assassino em série, Tsutoma Miyasaki, fã de Manga, que se deixava consumir pela sua obsessão recriando cenas das suas Manga preferidas, que recriava e fazia terminar em estupro e assassínio. Portanto, na época, criou-se um grande tabu em volta do termo e ele passou a ser usado de forma pejorativa para designar qualquer indivíduo que se torna obcecado demais em relação a um determinado assunto. Com o tempo o termo tornou a entrar no léxico e define, no Japão, já sem o estigma de Tsutoma Miyasaki, a afeição por um determinado hobby, seja ele qual for (computadores – pasokon otaku; videojogos – gemo otaku, etc.). Genshiken debruça-se no clube universitário com o mesmo nome que é subsidiado pela instituição. Os membros desse clube utilizam o orçamento para Manga, jogos e Cosplay (que consiste em recriar um personagem de ficção vestindo-se e agindo, nos casos mais extremos, como o personagem escolhido; não foi originalmente criado no Japão) e vivem e respiram toda a cena artística ligada ao mundo da Anime e Manga. Vivem-se situações engraçadas quando dois mundos diferentes colidem: um dos jovens que se junta ao clube Genshiken é bem-parecido e completamente distraído em relação ao que o rodeia, em especial a uma bela jovem que tudo tenta para o atrair. Essa jovem não percebe o mundo otaku, logo dá azo a muitas cenas divertidas e caricatas. Tudo isto é mexido com uma grande sensibilidade pelo autor, Kio Shimoku, que ora com humor ora com muita seriedade nos dá um retrato da sociedade japonesa (e não só, convenhamos) em especial destes jovens intervenientes um tanto ou quanto desfasados ou, melhor, incompreendidos pela sociedade em geral, a caminho de se tornarem adultos. Está classificado como um Seinen, mas aconselharia a sua leitura a jovens a partir dos 14/15 anos. Publicada em Inglês pela Del Rey, conta com o total, já fechado, de 9 volumes.
Outra série, já atrás referenciada, é o “The Kurosagi Corpse Delivery Service”. Série Shonen advanced de horror(cá está um caso que no ocidente será aconselhado para maiores de 18 anos), onde a ficção científica anda de mão dada com casos de policia, que por sua vez anda de mão dada com o sobrenatural, que por sua vez anda de mão dada com o bizarro…anda tudo de mãos dadas! O humor negro habita esta série com uma mestria notável, o que abate o tom muitas vezes tétrico nele impresso. A série segue um grupo de jovens recém-licenciados por uma universidade Budista e que sabem não terem grande saída no mercado de trabalho. O estranho grupo é constituído de 5 jovens, cada um deles com estranhos poderes ou vocações: um é um itako, tem a habilidade de comunicar com os mortos; outro tem o talento de descobrir, com a ajuda de um pêndulo, cadáveres; outra é especialista em preparar, embalsemar, cadáveres (que é uma arte rara no Japão, onde a cremação é o costume); outro é capaz de canalizar uma entidade alienígena que se manifesta através de um fantoche que carrega na mão; finalmente, a líder natural, uma especialista em hacking que consegue obter todo o tipo de informação através de um computador. Com determinados talentos e na perspectiva do desemprego decidem criar uma empresa em que o cliente é o cadáver! Procuram por cadáveres e servem-lhes o último desejo em troca de dinheiro (que quase sempre não recebem!). É magnífico. Escrito por Eiji Otsuka e desenhado por Housui Yamazaki, conta, até agora (no Japão também), com 11 volumes publicados; em Inglês está disponível pela Dark Horse. Cada volume tem vários casos que são fechados, mas existe uma trama maior por detrás que muito lentamente se vai descobrindo. Aconselho vivamente.
“Ikigami” é um Seinen que assenta no actual pressuposto que a vida é um dado adquirido e que algo tem que ser feito para que a sociedade aprecie o inestimável valor que ela representa, saindo da apatia que há muito assola essa mesma sociedade. O autor, Motoro Mase, delineia uma trama onde o Estado, qual “Big Brother”, encontra uma solução para o efeito. O Estado, através do sistema nacional de saúde, cria um programa de vacinação onde aleatoriamente uma em cada 1000 vacinas contém um patogénico que irá matar a pessoa em que for administrada entre a idade dos 18 aos 24 anos. A pessoa em questão será avisada pelas autoridades 24 horas antes de a morte ocorrer, para que possa por em ordem as suas coisas e fazer as suas despedidas. O protagonista desta série é um jovem recentemente admitido no programa nacional de saúde, que tem como função entregar os papéis de aviso de morte chamados de ikigami. É uma série “ongoing” carregada de muita tensão emocional e que é brutal na “solução” encontrada por um Estado com o objectivo de conferir mais “gosto” pela vida, quando o que estará em causa será maior dedicação, mais trabalho, logo, mais produção. É bastante interessante, está muito bem escrito, o desenho é excelente, se bem que consegue ser um bocado deprimente…não é uma leitura para qualquer hora…por outro lado, faz-nos pensar em aproveitar melhor os momentos que temos enquanto estamos vivos.
Estou a ler outras séries, algumas já foram referenciadas num outro post, como o absolutamente fantástico “20th Century Boys” ("Nijisseiki Shonen" dito em japonês, este é um título que merecerá um post só dele, se eu conseguir arranjar uma maneira de não fazer spoilers); o impressionante “Vagabond”; a arrebatadora visão de Naoki Urasawa em “Pluto”; o já bastante conhecido e perturbante “Death Note” (cá está um título onde o protagonista não olha a meios para atingir o seu fim); a fantástica narrativa de ficção pós apocalíptica “Nausicaä of the Valley of the Wind” do impressionante mestre narrador e desenhador que é Hayao Miyazaki, simplesmente maravilhoso e arrebatador. Com tempo (muito tempo) irei, aos poucos, trazer aqui alguns desses títulos.
Sendo ainda novo neste género ou estilo de BD, já dissequei muitas das suas facetas que me fazem crescer o prazer na leitura. Sendo bastante complicado obter títulos mais antigos, que remontam ao séc. XIX e meados do séc. XX, por não haver traduções, tenho que me recorrer à internet para os compreender e com isso obter mais cultura Manga para melhor atingir as imensas referências existentes nos actuais títulos. Espero que com todo este post ter sido de alguma ajuda a quem procura também melhor entender o género ou estilo. No que me toca, deu-me um trabalhão recolher toda esta informação em diversas fontes (bem-dita internet), mas foi bastante satisfatório. Se ainda estiver alguém a ler estas últimas linhas, poderá pedir-me a T-shirt “Eu consigo ler um post do Refém da BD até ao fim!”, existem na variante “…sem tomar drogas!” e “…sem adormecer!”. Beijinhos e abraços.